sexta-feira, 27 de maio de 2011

Cartas em "Já (não) te sinto em mim"

Porque a Lua me publicou uma há muito muito tempo, e porque tive a urgência de escrever outra... para que percebam a sequência vou postar ambas num só post:


A 20 de Junho de 2009 escrevi:

"Caro João:

Mais um dia em que acordas com esperança de que tudo mude certo?

Mais um dia em que olhando para a janelinha da tua cela o azul do céu te dá coragem para dares mais meia dúzia de passos nessa prisão negra onde te escondes... Mais uns metros em direcção à porta onde a liberdade te espera.

Mas a cada passo que dás mais ouves os Mars Volta a berrarem-te aos ouvidos, mais velhas feridas que se abrem (e as tuas veias que ardem como nunca), e Deus como é nojento o rasto que deixas atrás de ti rapaz... o teu sangue não é mais vermelho, antes um verde viscoso e nojento que exala de cada poro como se de suor se tratasse... Sentes a temperatura do corredor subir, sentes cada músculo arder e a linfa a evaporar-se de ti para fora e infiltrar-se nestes muros que te rodeiam e respiram contigo... Mas continuas a acreditar que no momento em que abrires aquela porta e vires o céu azul do outro lado e o mar lá ao fundo vais actuar tal qual Fénix, e renascer, deixar para trás estas paredes de granito negro, ser finalmente o sujeito bom e colorido que guardas com tanta força lá no fundo...

As paredes gritam-te a cada passo todos os teus ontens, todas as vezes que tentaste chegar a essa porta sem nunca a abrir, e o quanto isso te tornou na desilusão que te foste até ontem.

Hoje Ipirangas-te João, hoje abres essa porta pesada de marfim negro... semicerras os olhos devido à diferença da luminosidade entre essa fortaleza gigante que criaste à tua volta e o mundo lá fora... Hoje finalmente dás um passo lá fora, e mesmo de olhos fechados sentes a chuva limpar-te cada cicatriz... Sentes o visco retrair-se, e ouves as ondas lá ao fundo...

Jurmala... e o mar calmo e infinito à tua frente, reunindo o pouco ar que os teus pulmões ainda aguentam mergulhas na imensidão pacífica destas águas transparentes. Batizas-te a ti próprio no mais divino dos actos que tu como teu próprio Deus te permites. E hoje finalmente a Fénix não te foge... e hoje finalmente acredito no teu potencial...

É por isso velho João, que depois de me sentir renascido não te posso sentir mais em mim... Deixo essa tua velha carcaça construída na depressão e no cinzento para trás, caída na areia molhada, entregue aos elementos que tanto evitámos. Mato cada porção de pena própria que ainda te restava, e tomo rédeas da minha própria vida. Faço de conta que nunca nada se passou antes.

Sou finalmente ser humano. Sou-me novo. Sou-me eu e assumo a minha capacidade de errar como algo de bom, assumo também a capacidade de errarem comigo como um compromisso necessário... E perdoa-me porque sei que toda esta escuridão foi apenas a tua maneira de nos protegeres, agradeço-te até por teres construído este lugar dentro de nós que apesar de opressivo pelo menos nos era familiar, onde pelo menos sabíamos com que contar... Mas chega de ti e do teu mundo.

Se amanhã a queda for tão grande como todas foram até agora, talvez volte a ti, mas por ora, não te sinto mais em mim João. Tentarei com toda a sinceridade matar cada pedaço de ti que ainda me reste pondo assim um fim piedoso à nossa existência conjunta.

Até nunca velho eu... pelo menos assim o espero..."



A 27 de Maio de 2011 escrevo:

"
Caro João:

Dia 1
Esbracejo mais uma vez até sentir o pé na areia. O naufrágio deu-se por vontade alheia. A embarcação era frágil e já antes de embarcar sabia que a probabilidade de atracar são e salvo era mínima.
As ondas batem-me nas costas e embora tenha pé o cenário à minha frente é desolador.
Dei novamente à torre negra.
Olho para o meu corpo e lá a suspeita que o ardor criava confirma-se, a ferida no peito não cicratizou ainda, nu olho em volta para ver o que a pode parar, e tremo entre o medo e a mágoa de ver os restos da minha pele antiga ainda no sítio onde os tinha deixado. A velha carcaça de pedra terá de me abrigar novamente, para me poupar a dissabores maiores. Custa a entrar... o sal seco na pele incomoda imenso, e a rigidez dos anos abandonada ao rigor das estações dói faz-me sentir algo incómodo dentro dela.
O céu azul pôs-se cinzento em instantes, e a chuva lava-me o sal do cabelo e da cara. Gosto de chuva nestas situações, disfarça outros líquidos que me escorrem cara abaixo. Mas nesta situação é escusado. A ilha não tem vivalma só a porra da torre. E a outra tripulante salvou-se a tempo com o único colete salva vidas que existia.
Preciso de comer. Mas a ideia de voltar a entrar na torre deixa-me horrorizado. Ainda assim preciso urgentemente de me abrigar, não vá acordar pior.
Aproximo-me e a porta range ainda antes de lhe tocar.
Ao entrar sinto o calor e o cheiro a mofo que emana de dentro, dou dois passos e o ar está pesa

Dia 2.
Desmaiaste ontem, foi da forma que não te custou a adormeceres. Ainda chove lá fora João, é melhor não saíres. O musgo vermelho na parede há-de servir para te matar a fome hoje. E a tua cela, a tal dos 20 metros de altura continua tal como a deixaste, mas estranhamente mais convidativa.

Dia 5
O tempo lá fora melhora, mas lembra-te dos perigos que te espreitam João. O musgo parece crescer a um ritmo considerável de noite para noite, já não te lembravas que o sangue com que escreves nesta parede o alimentava tanto.

Dia 6
A carcaça parece assentar que nem uma luva agora. A ferida parece estar a cicratizar, mas pelo sim pelo não mantém-te cá dentro João. E pára de escrever isto... Não adianta, ninguém vai querer lê-lo.

(...)

Dia 23
Conseguiste João. Estou de novo preso em ti. De novo pequeno junto a estes muros gigantes, de novo assustado, magoado, paranóico. De novo entendo que não está na tua génese seres marinheiro, e que devias aprender a não confiar em quem te convida para barcos de fundo furado. Foste estúpido, agora tens o que mereceste.
Convence-te que tens é de te ser a ti, sozinho.

É a tua sina João..."

A ouvir na altura:
"Eriatrarka" - Mars Volta
http://www.youtube.com/watch?v=V4fhUAMnF7c


A ouvir agora:
"I knew it was over" - Cat's Eyes
http://www.youtube.com/watch?v=vExWDct-hOc