quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Viena, Janeiro próximo (?)

O convite ainda que pouco perceptível foi feito, digo eu... escrevo eu... enfim... mais uma interrupção para reescrever a saga de Zakopane (algumas incoerências no texto, fruto de bebida excessiva aliada à escrita, ando a reaproveitar ideias, depois largo-as por cá). No entretanto deixo-vos com este pedacito de um texto meu que mistura o meu passado com o meu sonho futuro... Espero que gostem ;)



Acordei com o chão do quarto repleto de cervejas, e senti-me encharcado, olhei para a janela aberta e sorri à neve que cobria os telhados e terraços do quarteirão inteiro, fechei-a e fui tomar banho.

Enquanto a água do chuveiro me caía em cima e aquecia tentava recuperar da ressaca horrível que ia sentindo, lembrei-me que tinha combinado contigo, abri a cortina e olhei para o telemóvel, estava já em cima da hora, escrevi à pressa uma mensagem a dizer-te que ia chegar atrasado e tratei de me despachar.

De volta ao quarto saquei da minha t-shirt castanha, e cheirei-a para ver se estava suficientemente limpa para a vestir, o teu perfume circulava nas suas fibras e nem pensei duas vezes. Vesti as calças enormes que já mal me serviam dada a quantidade de peso que perdia dia após dia (efeito da muita bebida e pouca comida certamente, mas para quê preocupar-me com isso?) e o casaco "contestatário" castanho escuro.

Saí do apartamento, chave no bolso direito, móvel no bolso esquerdo, leitor de mp3 ligado para uma qualquer música preenchida de bombos de bateria e de uma voz gigante.

Desci as escadas à pressa, algures entre dois andares um rosto amigo sorriu-me, disse "Olá, talk to ya later bro." e continuei a correr, abri a porta escorreguei pela neve fora até ao tram e senti as primeiras gotas a cair, subi as escadas e sentei-me e estranhamente estava já encharcado outra vez, sentia a água a escorrer-me pelo pescoço até às costas e olhei em redor. Uma multidão de rostos encharcados seguiam a sua viagem, sem sorrisos, sem palavras, perdidos nos seus próprios mundos interiores, tal e qual como eu, Wahringer Strasse nunca me parecera tão longa, pensei se me compensava apanhar o metro e decidi sair em Alserstrasse correndo até Floriangasse, tinha de passar pelo Tunnel ainda, para pedir à Juliane que entregasse o trompete ao Henri.

Subi os degraus e sacudi o cabelo, e entrei. O cheirinho a café quente e as cores quentes cumprimentaram-me com um sabor a casa.

"Grussgot Juliane!"

"Grussgot"

"Wie gehts?" tentei

"Gut gut, Are you ok? You're all wet... Is it rainning that much?" e eis o recurso ao inglês fazendo-me desistir de me armar em entendido desse alemão tão particular que é o vienense...

"Guess so, anyways, Henri is coming today at midday his trumpet is in the instrument room downstairs, can you give him my key so he can open it?"

"Sure jagga, don't worry... by the way how was the jam yesterday?"

"Good, quite good I'd say, heard anything about it?"

"Nope, well Mathias liked it, but you know him, he always likes your shows."

"Yeah, he's got quite a biased opinion" ri-me

"Yep, that's true, well gotta serve the costumers, Are you going anywhere now? Do you want to eat something? Looks like you could use a breakfast."

"I'll come later, don't worry, I'm going to meet a friend now"

"Ok, see ya then!"

"See you dear."

Voltei ao frio da rua e decidi fazer o resto do caminho a pé, estava atrasado e estava, e o desvio para o tram ainda era longo pelo que me podia fazer ganhar tempo, como poderia fazer perder tempo, o risco não me parecia compensar. À medida que me deslocava para o Ring a sensação de molha voltava, olhei para cima e vi-a:

Surpreendentemente baixa, talvez a uns 5 palmos da minha cabeça, uma nuvem minúscula e negra descarregava água em mim com toda a fúria possível. Olhei em volta para os edifícios que me rodeavam, pensei nas memórias todas que me traziam, ela e os seus olhos azuis que ainda impregnavam esta cidade tantos anos depois... O seu sorriso lindo, aberto, o seu cabelo pintado, aquele nariz empinado, o facto de que ela vivera aqui durante tanto tempo, e aos anos que já nem ouvia falar dela. Senti-me como me tinha sentido naquele mês de Setembro, sozinho, escuro, triste. Pensei no que poderíamos ter sido, e em má hora o fiz... Comecei a pensar no que poderia ter sido com tantas outras, e no que nunca tinha conseguido ser, e no quão inseguro era hoje por isso, perdido na Viena cinzenta que só faz sentido para quem já lá foi triste.

Pensei no quão inconcebível seria para ti provavelmente, tudo isto, no fundo, nunca viras Viena senão com um sorriso, e gostava de ti por isso, pelas memórias que não partilhavas comigo, pelo facto de sabendo tanto de mim não fugires. Está certo que não corrias para mim, era mais que notório, mas no entanto não me afastavas, mesmo sem nunca me teres prometido nada... E lembrei-me da Elis Regina e de Ossanha traidor e sorri à ironia com jeitinho malicioso.

A chuva continuava, e eu continuava circulando de pensamento em pensamento, sempre pensara que a única forma de escrever algo de jeito seria numa cidade assim, opressiva na sua imponência, desafiante na sua beleza, cinzenta e escura na sua alegria até. Desviei ao Miles Smiles onde cumprimentei o velhote de cabelo ondulado e grisalho.

"Hey there kiddo.."

"Good morning."

"What do you want today?"

"A beer, but just give me a can, I gotta run"

"Crazy latino" gozou-me

"Cranky austrian" retorqui

"True, true, always complaining me good ol' me, 'tough you are living the good life man" Num sotaque mais escocês que vienense, que sempre me fazia rir.

"Really think so? Haven't been seeing it much that way..."

"Girl problems?"

"Bah, that comes with being a man, naaah... more like life problems... kinda feel lost..."

"You always will The meaning of life is for the Gods to know and for the humans to break their heads trying to figure it out. Well now, I just noticed your little companion." e apontou para cima da minha cabeça

"Yep... 's been following me since I left home, don't really know why..."

"Feeling blue?"

"Nah just feeling the blues... not happy blues, not sad blues, just the blues"

"There ain't no such thing as apathic blues kiddo."

"Guess not... Anyways where's that freaking beer?"

"Here you go, no runnin' man, no runnin' coz I'm a cranky old guy, man."

"So was Coltranne and he was only 37 * "

"You learn fast I see" sorriu

"Well euro and half right?"

"It's on the house, just get rid of that cloud man.See you later?"

"Bah band practice, so probably around midnight."

"Ok, bring the drummer, I like joking with the guy."

"Yep, Simon's a good guy indeed. Auf Wiedersehen"

"Adiós"

"Adeus, not Adiós. portuguese not spanish."

"Spanish, portuguese, what's the difference? All latinos, and all preferred by austrian girls..."

"Who cares about austrian girls?" ri-me e saí enquanto as suas gargalhadas ecoavam porta fora.

Abri a lata enquanto andava, e despachei-me a bebê-la... dois goles, três goles, e quatro e cinco. Dois passos, virei-a sobre mim e bebi o resto dum trago, amassei a lata e atirei-a para o caixote à minha frente, saquei um cigarro do bolso e escondi-o dentro do casaco para não se encharcar, acendi-o e protegi-o debaixo da mão quase fechada... Enquanto passava pelas montras da Josefstadter observava a nuvem por cima de mim a ganhar força... Reparava também em como todos os que passavam por mim iam também eles encharcados. passei pela Rathaus e desci até ao Volksgarten, o jardim coberto de neve estava fantástico. Peguei no móvel e liguei-te disseste-me que estavas a chegar, olhei para a paragem de tram e vi-te lá ao longe, casaco de malha cinzento top amarelo, sorriso gigante, e uma alegria gigantesca emanava de ti. Acenei-te levantando uma cobra de água que correu do meu braço para o céu e caiu escassos centímetros no chão à minha frente marcando a neve. Fiquei parado à espera que te aproximasses e à medida que te aproximas reparo que a luz em ti é diferente, por alguma razão estás mais colorida que tudo o resto à tua volta, e então reparo que ao passares a neve derrete-se, as nuvens desaparecem, as pessoas começam a falar umas com as outras, sorriem, riem, as árvores reganham as folhas em questão de segundos.

Chegas-te a mim, dou-te um beijo demorado na cara, molhando-te, mas tu pareces não te importar minimamente... Agarras a minha mão direita, com a esquerda limpo a face das gotas que ainda escorrem, a minha nuvem passa diante dos meus olhos de cinzenta a branca, de branca a Sol, e o meu Sol junta-se ao teu num único gigante que começa a subir em direcção ao céu afastando neve, nuvens, humidade, frio, cinzento, tudo...

"Vamos ao MQ." dizes-me enquanto te encostas a mim para que eu te abrace com o meu braço direito.

E o Verão imita-nos e abraça Viena a meio de Janeiro.

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A ouvir:

Florence and the Machine

"Howl"

álbum: Lungs

link


*Aos 37 John Coltranne publicou "A Love Supreme" uma das obras mais influentes do seu quarteto clássico, era a minha private joke com o dono do Miles, (do qual percebi agora, nunca soube o nome) costumava gozar e dizer que ele se tinha atrasado 10 anos em relação à pop, e ele dizia "nah... jazz just keeps you from aging as fast on the outside, you just age inside... like good'ol wine"