O barulho da máquina de escrever era ensurdecedor, cada martelada de cada tecla no rolo era uma pequena explosão de felicidade no seu espírito... A criatividade parecia-lhe ter voltado, e isso deixava-o feliz pela primeira vez em anos... Os dedos já lhe doíam mas ele ignorava esse pequeno incómodo, em prol da magnífica descrição que estava a fazer:
"O pôr do Sol preenchia-se de tons rosados e alaranjados, que ofuscavam os olhos de quem para ele olhava directamente. A nascente, no entanto, a noite aproximava-se conquistando cada pedacinho de luz à sua passagem, as florestas na encosta respiravam à medida que a brisa do ocaso corria por elas convidando-as a juntarem-se para a festa de recepção à Lua..."
Parou por dois segundos, leu o que tinha escrito até então e ficou na dúvida se o que escrevia não soava excessivamente a
pretensão... Pontapeou-se mentalmente por se atrever a pensar sequer em não continuar a escrever, após um hiato tão grande, (de meses meu Deus, de meses) em que não tinha escrito uma única linha...
"MIGUEL!"
"SIM."
"TRAZ UM CAFÉ AO PAI!"
"SIM PAPÁ."
Atirou-se novamente ao texto, "uma personagem, tenho de criar uma personagem..."
"Os seus olhos azuis esverdeados eram espelhos da sua alma, esperançosa mas distante, com uma vontade imensa de construir um futuro melhor, mas com medo de que esse futuro reflectisse o seu passado como numa repetição eterna e dolorosa... Os caracóis longos caíam-lhe despenteados pelas costas abaixo seguindo a imagem de quem guardava as suas preocupações para algo bem maior que o aspecto exterior, de térérés grossos, de vestidos simples e bonitos de pretensão de alegria, apesar de toda a insegurança que a marcava..."
"O teu café pai..."
"Obrigado."
Olhou para o miúdo... Como ele o lembrava da mãe, a mesma paz atravessava todo o seu corpo de 8 anos terminando numa aura extraordinariamente grande de inocência... Sentia-o tão diferente de si, tão parecido com ela, e isso fazia-o sentir-se melhor. Mesmo na ausência dela tinha conseguido que ele fosse tão bonito como ela fora, e mesmo ele apesar de agora já não escrever tanto como antes, nem se achar tão bom artista como quando ela estava presente, sentia-se mais humano, mais simples, mais feliz.
"Queres ir dar uma volta com o pai?"
"P'ra onde?"
"Vamos passear o Rex à praia."
"Siiiim!!!"
Bebeu o café dum trago e olhou para as palavras que tanto tempo lhe tinham custado a sair... "As palavras voltam amanhã ou depois ou depois, o Miguel não..." pensou.
"Vamos Miguel"
E lá foram eles, em direcção à praia, onde o pôr do Sol se preenchia de tons rosados e alaranjados, que ofuscavam os olhos de quem para ele olhava directamente. Nas suas costas, a noite aproximava-se conquistando cada pedacinho de luz à sua passagem.
Se a arte não passar de uma tentativa de expressar a realidade, vista através dos olhos de quem a expressa, então o simples facto de existir interpretação de quem assiste à tentativa artística, gerará uma nova realidade, a do espectador, e a iniciativa do artista cairá por terra e será em vão.
A arte deverá fazer-se pela necessidade de permitir aos outros uma interpretação própria e uma reflexão, não por se querer impor a um outro a nossa visão do que somos ou vemos.
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A ouvir:
"Rhynestone Cowboy"
Madvillain
álbum: Madvillainy