segunda-feira, 29 de junho de 2009

writters block

O barulho da máquina de escrever era ensurdecedor, cada martelada de cada tecla no rolo era uma pequena explosão de felicidade no seu espírito... A criatividade parecia-lhe ter voltado, e isso deixava-o feliz pela primeira vez em anos... Os dedos já lhe doíam mas ele ignorava esse pequeno incómodo, em prol da magnífica descrição que estava a fazer:


"O pôr do Sol preenchia-se de tons rosados e alaranjados, que ofuscavam os olhos de quem para ele olhava directamente. A nascente, no entanto, a noite aproximava-se conquistando cada pedacinho de luz à sua passagem, as florestas na encosta respiravam à medida que a brisa do ocaso corria por elas convidando-as a juntarem-se para a festa de recepção à Lua..."


Parou por dois segundos, leu o que tinha escrito até então e ficou na dúvida se o que escrevia não soava excessivamente a

pretensão... Pontapeou-se mentalmente por se atrever a pensar sequer em não continuar a escrever, após um hiato tão grande, (de meses meu Deus, de meses) em que não tinha escrito uma única linha...


"MIGUEL!"

"SIM."

"TRAZ UM CAFÉ AO PAI!"

"SIM PAPÁ."


Atirou-se novamente ao texto, "uma personagem, tenho de criar uma personagem..."


"Os seus olhos azuis esverdeados eram espelhos da sua alma, esperançosa mas distante, com uma vontade imensa de construir um futuro melhor, mas com medo de que esse futuro reflectisse o seu passado como numa repetição eterna e dolorosa... Os caracóis longos caíam-lhe despenteados pelas costas abaixo seguindo a imagem de quem guardava as suas preocupações para algo bem maior que o aspecto exterior, de térérés grossos, de vestidos simples e bonitos de pretensão de alegria, apesar de toda a insegurança que a marcava..."


"O teu café pai..."

"Obrigado."


Olhou para o miúdo... Como ele o lembrava da mãe, a mesma paz atravessava todo o seu corpo de 8 anos terminando numa aura extraordinariamente grande de inocência... Sentia-o tão diferente de si, tão parecido com ela, e isso fazia-o sentir-se melhor. Mesmo na ausência dela tinha conseguido que ele fosse tão bonito como ela fora, e mesmo ele apesar de agora já não escrever tanto como antes, nem se achar tão bom artista como quando ela estava presente, sentia-se mais humano, mais simples, mais feliz.


"Queres ir dar uma volta com o pai?"

"P'ra onde?"

"Vamos passear o Rex à praia."

"Siiiim!!!"


Bebeu o café dum trago e olhou para as palavras que tanto tempo lhe tinham custado a sair... "As palavras voltam amanhã ou depois ou depois, o Miguel não..." pensou.


"Vamos Miguel"


E lá foram eles, em direcção à praia, onde o pôr do Sol se preenchia de tons rosados e alaranjados, que ofuscavam os olhos de quem para ele olhava directamente. Nas suas costas, a noite aproximava-se conquistando cada pedacinho de luz à sua passagem.





Se a arte não passar de uma tentativa de expressar a realidade, vista através dos olhos de quem a expressa, então o simples facto de existir interpretação de quem assiste à tentativa artística, gerará uma nova realidade, a do espectador, e a iniciativa do artista cairá por terra e será em vão.

A arte deverá fazer-se pela necessidade de permitir aos outros uma interpretação própria e uma reflexão, não por se querer impor a um outro a nossa visão do que somos ou vemos.


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A ouvir:

"Rhynestone Cowboy"

Madvillain

álbum: Madvillainy

vídeo


segunda-feira, 22 de junho de 2009

O Presente não te tem tanto...

E de repente dou por mim a reouvir Velvet Underground... Mas desta vez, há algo de diferente... de explosivo, de redentor de... sei lá... sinto aquele cheirinho a liberdade, e a Verão, e a ser-me finalmente eu, e não mais o que fui contigo. Definitivamente eu, e embora haja carinho pelo que és e foste, e haja memórias e uma avaliação do que elas podem representar para mim, e, do quão diferentes elas serão para ti, o que interessa, é que de repente parei de me culpar.


Chega de me culpar por tudo o que ambos fizemos de errado, coisa que fazia apenas por te achar tão grande que não queria que tivesses de arcar com nada... Chega... Chega... Chega...

Chega de passado recente ou distante, chega de comparar o quanto nos magoámos e o quanto sofremos e tudo o mais... Tu não me deste espaço para resolver as coisas quando foi tempo disso, e, culpas-me a mim de me ter afastado e de te ter magoado por capricho e egoísmo... seja...


Tu criaste o teu novo mundo... Eu começo agora a criar o meu... A diferença e o que me põe um sorriso irónico na cara, é saber que o teu mundo novo terá muito mais do meu passado do que o meu terá de ti... Quando foste tu que me puseste fora dele... Não sorrio por ficar feliz por isso, muito gostaria eu de voltar a ter a esperança de ser um ser humano melhor, como tive quando os nossos mundos colidiram... Muito gostaria eu que tu me visses mais como o ser altruísta que de facto tentei ser, do que o monstro que erra em tudo como acabaste por passar a ver-me (e quiçá com mais razão do que eu queria admitir), numa perspectiva distante que criou caminhos de ti para fora de mim sem volta possível.


E tudo bem... como tu própria disseste as pessoas crescem e afastam-se... Não queria afastar-me de ti... Gostava de te ter por perto... como sempre te quis ter por perto, como a amiga que sempre pretendi que tu fosses, mesmo quando achavas que eu ambicionava mais... Falhei em transmitir essa mensagem, como tu falhaste em fazer-me sentir seguro no que sentias...


Mas voltei a ouvir Velvet Underground, e, de repente, há um brilho duma luzinha ainda muito ténue lá ao fundo. Que demorará, como é óbvio até me ganhar a confiança suficiente para me fazer sonhar... Mas há finalmente uma réstiazinha de esperança... E não há mais inutilidade, porque de repente, sou capaz de criar um sorriso sincero, e sou capaz de corar novamente quando os nossos olhos se cruzam, e sou capaz de pensar que às tantas ela não é tu... e que isso não me faz mossa nenhuma, que me alivia até... Porque talvez desta vez não terei de ser um gigante para a conquistar, porque talvez desta vez ser-me a mim lhe chegue...


E ao mesmo tempo, esta nova luz é apenas uma hipótese, que se não acontecer prova-me pelo menos que sou finalmente menos tu. E prova-me que sou novamente o meu eu azul, não mais essa coisa cinzenta dos últimos meses, construída sem vontade de nenhum de nós, mas com a ajuda dos dois. E prova-me que por muito que me custe, até me é possível pôr um sorriso sincero. E prova-me que consigo escrever sem nos ter (a mim e a ti) no meio de cada linha.


E de repente volto a ouvir Velvet Underground, já não pelo quão depressivo o som me parece, mas porque na heroin apesar de todos os fantasmas que revivem em mim ao ouvi-la, o violino monocórdico dá-me efectivamente esperança...


Esperança num tempo em que as pessoas eram mais o que eu tentei ser contigo, por me inspirares o suficiente para tal. Esperança num tempo em que as pessoas eram o que eu um dia serei por mim, e porque esse é o meu sonho, e porque serei forte o suficiente para o ser sem precisar de o ser por mais ninguém.


Agradeço-te por me teres tentado dar o que quer que me tenhas tentado dar e que eu não percebi ainda bem o que foi...


Agradeço-lhe a ela por me fazer ver que neste momento já consigo ser mais eu do que achava...


Agradeço-vos a ambas por me mostrarem que preciso de ser eu por mim, e não de ser algo diferente pelos outros.


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A ouvir:

"Heroin"

Velvet Underground

álbum: The Velvet Underground & Nico

vídeo (versão acústica ao vivo)



segunda-feira, 15 de junho de 2009

sozinho...

A noite escura escondia-lhe o rosto que o cigarro iluminava...

Os fios de luz que a persiana deixava entrar morriam no som que lhe saía das colunas, e no brilho branco e intenso do ecrã do computador.

Perdido em não saber o que era, e em turbilhões de pensamentos que se encadeavam tão caoticamente como fumo que lhe saía da boca e que embatia no vento lá de fora, perdido na falta de rumo, e nos planos que traçara e que se tornavam inúteis agora que se sabia sozinho.

Pensava nela, no quão bela ela provavelmente lhe pareceria agora se a pudesse ver, ferrada no seu sono bom com o sorriso enorme que tanto o confortara e assustara por parecer bom demais para si.


Não tinha mais nada a perder, pouco tinha para deixar para trás, sabia que as coisas pelas quais daria a sua vida estavam irremediavelmente perdidas, fechadas num passado que tanto gostaria de mudar, inacessíveis num futuro que ele não sabia como alcançar. Apetecia-lhe calçar as sapatilhas e sair porta fora em direcção a nada. Andar por andar, perder-se no mundo, e aprender o que os seus 23 anos não lhe tinham ensinado.


A música acabara... o cigarro também... atirou-o para o telhado ao lado da sua janela, inspirou o ar fresco da noite, voltou-se e aproximou-se do portátil, e repetiu a música:


"This is the place where I don't feel alone

This is the place where I feel like home"


Correu-lhe uma lágrima, não de tristeza, e de alegria não era também certamente... Correu-lhe uma lágrima pelo hábito de se sentir assim... Com saudades de mundos aos quais nunca tinha pertencido, mesmo querendo, com saudades de mundos aos quais nunca pertenceria, mesmo tentando.

Sentou-se e tentou escrever, mas as palavras estavam de novo encerradas dentro de si. Tentou começar com as suas metáforas, ou com os seus lugares comuns, mas tudo lhe parecia pequeno aquando comparado com o potencial que vira nos quadros e esboços dela. Um Universo tão enorme que ele compreendia, mas que nunca teria talento para expressar. E para quê fazê-lo quando ela o fazia tão melhor e tão mais facilmente? Como poderia ele tentar ser tudo aquilo se ela mesmo lhe tinha mostrado (mesmo que não intencionalmente) que ele não era suficiente para tal? Quando até apenas o sorriso dela era tão maior que todo ele...

Pensou novamente na vontade de desaparecer no mundo, de pura e simplesmente de ir ao encontro do que a estrada lhe trouxesse, mas o comodismo e covardia impediam-no de o fazer, as responsabilidades que lhe tinham sido impostas esmagavam-no.


"Acaba o curso" "Arranja um emprego" "Cria uma família" "Estuda" "Sê grande" "Tu tens potencial para tanto"



"Nós podemos ser tão grandes"


Acima de todas as outras, esta frase ecoava de forma especialmente triste... Perdera-a, por culpa sua, e por culpa do seu egoísmo, e por culpa de não ter nunca conseguido ver nada do que ela lhe tentara mostrar... E perdera também aqueles que considerava como amigos, por lhe ser demasiado difícil aperceber-se de que não lhes era tão importante como achara. E no fundo sempre havia sido esse o seu problema, nunca se sentira importante em ninguém, em nada, em nenhum lugar a não ser dentro de si... E no entanto tudo ganhava uma importância tão gigante dentro dele... Como os acordes que ouvia agora e que lhe enchiam o peito e os olhos de uma mágoa que mais uma vez não conseguia expressar em palavras.


"Não sou suficientemente bom..."


E não chegou a dizer o "ainda", deu um passo atrás, fechou a janela, abriu a porta de pinho escuro do seu armário e tirou a almofada, deitou-se.


Ainda não fora hoje que ganhara a coragem para partir. Muito menos fora hoje que se apercebera que não há porta nenhuma que se feche para sempre, apesar do que se possa dizer.

Ou haverá?

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A ouvir:

"To build a home "

Cinematic Orchestra

álbum: live at the royal albert hall

vídeo (ao vivo com Grey Reverend)